A fada do lar

Vivemos numa época cheia de certezas e de verdades feitas, em que as pessoas pensam pouco, ouvem ‘umas coisas’ e repetem clichés. Muitas feministas que debitam banalidades sobre a ‘felicidade das mulheres’ nunca souberam o que era um trabalho duro fora de casa.

Vejo discutir-se acaloradamente um livro chamado Identidade e Família – e pasmo. Ouço pessoas dizer que não sabem o que significa ‘família tradicional’. Não sabem? Claro que sabem! Estão fartas de saber. É óbvio que há outro tipo de uniões, por exemplo, duas mulheres ou dois homens com ou sem crianças (adotadas ou filhas de um deles). Mas essas não são obviamente ‘famílias tradicionais’. Só nestas pode haver filhos comuns de ambos os cônjuges. Basta isto para as distinguir de forma objetiva.

Curiosamente, estive envolvido há oito anos numa polémica semelhante, pela publicação do livro Eu e os Políticos. E o apresentador, por coincidência, era o mesmo: Pedro Passos Coelho. E até a problemática era parecida: envolvia questões relacionadas com as chamadas ‘questões fraturantes’.

A coisa começou com uma notícia do DN que dizia: «Livro com revelações da vida sexual de políticos apresentado por Passos». A partir daí, a vozearia começou. As TVs puseram-se a fazer debates atrás de debates, eu fui excomungado, mas o alvo principal era naturalmente Passos Coelho – que a certa altura me ligou e disse: «José António Saraiva, eu nunca fujo aos compromissos que assumi. Apresentarei o seu livro – a menos que me desobrigue de o fazer. Só nesse caso não o farei». Claro que o desobriguei no mesmo segundo. Já tinha, aliás, intenção de o fazer. O próprio PSD tinha entrado em ebulição, e o que eu menos queria era colocar Passos Coelho numa situação desconfortável. Ele já me fazia o favor de apresentar o livro, só faltava que tivesse de pagar um preço por isso! 

Mas não é este o objetivo deste artigo. Estas são águas passadas. O curioso é Passos Coelho voltar a estar envolvido numa situação semelhante – com a diferença de que, não tendo o ‘escândalo’ sido previamente anunciado, a apresentação da obra realizou-se mesmo.

Tenho ouvido dizer que o livro é reacionário, ultraconservador, de extrema-direita e até fascista.

E fico pasmado! A família é uma invenção reacionária, extremista, fascista? A conceção de família que o livro defende não é a mesma da Igreja Católica? Será a Igreja Católica, esmagadoramente maioritária entre a população portuguesa, uma instituição de extrema-direita? 

A propósito do livro, dizem-se as maiores enormidades. Ridicularizam-se as mulheres que abdicam de trabalhar por conta de outrem para ficarem em casa a cuidar dos filhos. Chamam-lhes depreciativamente ‘fadas do lar’. Afirmava há dias uma conhecida comentadora que as mulheres que não têm oportunidade de trabalhar fora de casa são «profundamente frustradas e infelizes». Serão mesmo? Conheço algumas mulheres nessa situação que não me parecem nada frustradas ou infelizes. E conheço mulheres que têm empregos e se dizem infelizes e deprimidas. 

De resto, nunca se ouviu falar tanto em depressão, em ambos os sexos mas sobretudo em mulheres, como se ouve agora – num tempo em que estas deveriam estar mais felizes do que nunca, pois a maioria trabalha fora. 

Sobre esta questão, apetece-me fazer às feministas uma pergunta direta: qual dos membros de uma ‘família tradicional’ terá mais condições para  ser feliz: a mulher que fica em casa a cuidar dos filhos ou o homem que trabalha numa obra em que passa o dia a carregar de um lado para o outro tijolos e sacos de cimento? Qual dos dois se realizará mais? E que mulher poderá ser mais feliz: a que fica em casa a tratar dos filhos ou a que trabalha numa empresa de limpeza e passa os seus dias a limpar casas de banho? 

A questão é que, quando pensamos em trabalhos fora de casa, pensamos em tarefas exaltantes: uma cientista, uma empresária, uma médica, uma costureira, mesmo uma empregada de balcão numa loja de luxo. Mas quando passamos daí a trabalhos sórdidos, como limpar retretes, ou a trabalhos duros, como estar numa fábrica a repetir maquinalmente durante oito horas a fio o mesmo gesto, ou a trabalhos inúteis, como estar num escritório a preencher papeis que não servem para nada, interrogamo-nos: será isso mais exaltante do que ficar em casa a tratar dos filhos, a ir buscá-los e levá-los à escola, a fazer-lhes o lanche e o jantar? Será mesmo? 

Vivemos numa época cheia de certezas e de verdades feitas, em que as pessoas pensam pouco, ouvem ‘umas coisas’ e repetem clichés.

Tenho a certeza de que muitas feministas que debitam banalidades sobre a ‘felicidade das mulheres’ nunca souberam o que era um trabalho duro fora de casa. E que muitas mulheres prefeririam ficar em casa a terem de se levantar de madrugada, levarem a correr os filhos à escola, irem a correr para empregos chatos, ou sujos, às vezes importunadas por chefes que as massacram ou assediam.

Eu não faço a apologia da fada do lar nem a deprecio. Apenas digo que é uma decisão que cabe a cada mulher, de acordo com o que pensa e o que gosta de fazer, se tiver possibilidades de decidir livremente. Não há um padrão de mulher que se possa erigir como arquétipo; há mulheres assim e assado, mulheres que se sentem mais realizadas nas tarefas domésticas e no acompanhamento dos filhos, e mulheres que preferem o trabalho fora de casa. 

Ou não será assim?

P.S. – Passos Coelho voltou a ser objeto de polémica esta semana. Mas agora sobretudo por razões políticas, que não cabe aqui analisar.