A falsa narrativa

Se a Mercearia do Bolhão tivesse entre os seus clientes regulares metade daqueles que agora se indignam nas redes sociais, o proprietário estaria empenhado em manter o negócio.

Foi notícia que uma loja da baixa portuense – a Mercearia do Bolhão, junto ao mercado que lhe emprestou o nome –irá encerrar as suas portas. O proprietário do prédio e da mercearia decidiu alugar o espaço a uma marca de bugigangas.

Tenho pena, porque o comércio tradicional faz parte do caráter da cidade. Mas lamento também os comentários que li sobre o assunto. O alvo favorito das culpas é o turismo. Ora, os turistas procuram produtos tradicionais, autênticos, diferenciados. Por isso, são eles quem sustenta este tipo de negócios com as suas compras. Não compram no e-commerce nem nos centros comerciais que cercam o Porto e que foram os grandes responsáveis, em cumplicidade com os consumidores que os preferem, pelo definhamento, há décadas, do comércio de rua.

Em inícios do século, não havia dia em que uma loja de rua não fechasse as portas no Porto. Não existia turistificação quando a Casa Forte encerrou há 20 anos ou quando a Livraria Lello estava em risco por falta de clientes. Se a Mercearia do Bolhão tivesse entre os seus clientes regulares metade daqueles que agora se indignam nas redes sociais, o proprietário estaria empenhado em manter o negócio.

Ainda assim, não faltou quem culpasse o turismo e o impacto no aumento das rendas, que a esquerda populista apelida de ‘especulação imobiliária’. Houve também quem apontasse o dedo à perda de habitantes, quando ali ao lado, no quarteirão da antiga Casa Forte, onde havia um buraco negro há décadas, existe hoje habitação nova. Dezenas de casas foram compradas, maioritariamente, por portuenses.

Depois fala-se da maldita ‘lei das rendas’. Um embuste, por muito que convenha à narrativa. Como acima escrevi, a mercearia e o imóvel têm o mesmo dono, o que explica que este nunca tenha aderido ao ‘Porto de Tradição’ – um programa municipal de proteção das lojas históricas pioneiro em Portugal, que tem conhecido forte adesão. O Executivo Municipal classifica os estabelecimentos, impedindo a denúncia dos respetivos contratos e apoiando os lojistas em obras de reabilitação.

Neste caso, o negócio não estava à mercê de um contrato com um senhorio: o proprietário do edifício é o dono da mercearia. Negócio que legitimamente não quer manter, pois prefere capitalizar o imóvel, aproveitando a reabilitação da envolvente. Eis o capitalista perfeito, que apelida de ‘selvagem’ o modelo que lhe convém.

Os indignados, que acusam a Câmara e, porventura, miravam a mercearia mas nunca lá gastaram um euro, serão os clientes da nova loja de bugigangas, onde encontram bloquinhos com unicórnios produzidos no Oriente para empanturrar a árvore de Natal. E também não deixarão de fazer compras nos dois supermercados que abriram nas proximidades (desmentindo o argumento da desertificação), onde as nozes e as passas podem até nem ser melhores mas são, certamente, mais baratas do que eram na velha mercearia. Limpam a consciência com a indignação ululante nas redes sociais, aquecida por um argumentário incutido pelos radicais e pelos seus cúmplices na Comunicação Social.

Os cidadãos têm a cidade que querem. São eles que escolhem o poder político e podem, por isso, votar em quem tem varinhas mágicas e prometa expropriar o comércio local ou proibir um merceeiro de vender o seu negócio. E são também os cidadãos que moldam
a cidade que é sua, ao adotarem diariamente um estilo de vida
e de consumo.