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Entrevista

Bárbara Guimarães: "A nossa felicidade está nas pequenas coisas. Nas coisas que levam o mundo para dentro de nós."

A apresentadora escreveu sobre a década mais dura da sua vida, aquela em que passou por um processo de divórcio em tribunal, público, e durante a qual foi diagnosticada com um cancro na mama. “Tempestade perfeita, como sobrevivi à tormenta” é um fragmento da sua vida escrito com bravura e sem rodeios.

Foto: Augusto Brázio
19 de abril de 2024 Rita Silva Avelar

Encontro-me com Bárbara Guimarães no Kaffeehaus, no Chiado, em Lisboa. "A escolha foi perfeita. Foi aqui que me encontrei há muitos anos com o Maestro [Vitorino de Almeida], era o único onde se podia comer um Wiener Schnitzel." Achámos graça à coincidência, uma vez que a marcação foi aleatória, e começamos a conversa a falar sobre A Cadela, de Pilar Quintana, romance que leio imediatamente a seguir à Tempestade Perfeita (Oficina do Livro), a autobiografia da apresentadora. O cão Caju, que adotou há poucos anos, está sentado entre as duas, aos nossos pés, estamos debaixo de um guarda-sol a tentar sobreviver ao calor. Já a ir embora, passamos pela Bertrand, e Bárbara fotografa o seu livro na montra, o orgulho visível no rosto, a emoção de o ver em destaque, ri-se como uma criança feliz. "Acha que o vão ler?" pergunta-me, enquanto lhe explico que o li numa noite, com ânsia para chegar à última linha. Nestas páginas, encontramos uma mulher a tentar equilibrar a balança da vida em todas as pequenas coisas, que mostra os seus defeitos sem pudor, que revela o seu lado mais ingénuo e aventureiro sem nada temer, que não se importa de fazer saber ao mundo que é uma mãe como as outras, com fragilidades e receios, que tenta educar pelo melhor. Em última instância, uma mulher que, a três dias de celebrar 51 anos, nascida no Lubango, Angola, "numa noite de tempestade", continua a tentar acreditar na felicidade mesmo quando "a próxima onda" a derruba. 

Este livro parece ter-lhe saído como uma rajada, como se tivesse sido despejado, com algum alívio e também com alguma distância desta década negra da sua vida. Foi assim?

Qual é a primeira coisa que fazemos quando nascemos? Aquilo que diz [ao mundo] que nós estamos vivos? É o grito. O livro tem esse grito, diz que estou viva. ‘Lembro-me disto. Escrevo isto. Depois acalmo-me.’ Digo que é como um sopro de vida, porque acabei o livro a sentir-me assim: ‘Olha, está aqui o que eu vivi, o que foi execrável está ali, o que foi bom está aqui.’ É honesto, há essa transparência. É: ‘olhem, isto foi o que aconteceu, entrego-vos.’ Não entro em grandes pormenores da minha vida privada, mas entro em algo que nunca entrei até agora, que é contar como foi. Isto é sincero. Eu não sou escritora, e não tenho pretensões de ser escritora. Eu sou apresentadora, formada em jornalismo pelo CENJOR. Editora, tudo isso. Mas aqui está um testemunho de histórias reais que se calhar nunca se contam (porque se calhar quando estou numa entrevista não me perguntam nada disso).

Qual foi o maior desafio que sentiu ao escrever?

Saber o que era ou não notícia. Saber o que teria ou não interesse. É curioso pensar nisso. ‘Os panados deixam um lastro de odor num hospital asséptico onde estão médicos e enfermeiros’. Mas é uma descrição que nos transporta para lá.

Por exemplo, nas partes da descrição da casa no campo, sente-se essa liberdade, os momentos de pura alegria na horta.

No meio do lançamento do livro, que foi apresentado pelo meu amigo Rodrigo Guedes de Carvalho, ele diz assim: ‘Deixem-me só dizer uma coisa.’. E eu: ‘Rodrigo, todas as que tu quiseres.’ E ele: 'A Bárbara escreve sobre o seu lugar, o seu refúgio secreto. Mas só faltou dar as coordenadas de GPS!’ E é verdade. É um lado meu, muito orgânico. Por exemplo, fiz uma história [story] do Caju no Instagram, e recebi imensas mensagens de amigas minhas a dizer: ‘sabes que se vê o teu número de telefone na coleira do Caju, não sabes?’ Bastava ampliar e qualquer pessoa podia ter o meu número (…). Eu estou a falar de um refúgio secreto, e qualquer pessoa consegue lá chegar facilmente, a vila é uma comunidade. E não contei tudo! Porque era um refúgio secreto (risos).

Bárbara Guimarães:
Bárbara Guimarães: "A nossa felicidade está nas pequenas coisas. Nas coisas que levam o mundo para dentro de nós." Foto: DR

O livro tem toda essa sensação de liberdade e de libertação. Mas nesse refúgio, em Alcobertas, parece que há um redescobrimento do que é o luxo. É assim? A maturidade também trouxe isso?

Também, claro. Eu passei dos 40 para os 50 muito rapidamente. Foi uma década que acabou por ser estranha. Mas teve coisas muito boas. Maravilhosas. A que eu dei muito valor, até mais do que se passasse por elas sem ter estas provações todas. Mas foi uma década dura. Mas viveste grandes momentos, apareceram pessoas na tua vida, o Caju chegou, os meus filhos cresceram, a minha família multiplicou-se. Houve coisas muito boas. Os meus amigos renovaram-se. A rapidez faz com que chegas aos 50 e pensas: ‘bem, isto passou rápido demais’. Agora, nessa década chegou Alcobertas, como apenas uma casa no campo. Tudo é à nossa dimensão, a nossa felicidade está nas pequenas coisas. Nas coisas que levam o mundo para dentro de nós.

Dois meses depois de comprar a casa, sou ‘notificada’ para mostrar a justiça da vida. Sim, receber um diagnóstico de cancro foi como se fosse notificada. ‘Olhe, tem um cancro.’ A verdade é esta; comecei a mobilar a casa, a ir buscar coisas que faziam parte de outras vidas, de outros momentos, de outros sítios, velharias.

Fala muito nesse gosto pelas velharias, no livro. De onde vem?

Sempre gostei disso. Sempre. Não me podem dar melhor programa que uma bela feira em Santarém, ou em Estremoz. Até em sítios que não são conhecidos e que eu adoro. Eu gosto de cozinhar. E em Alcobertas vi um senhor que estava a vender recipientes de azeite de um velho lagar, e um pequeno móvel com portas de vidro, curtinho, e de um verde… e com uns puxadores que têm patine de há mais de 100 anos. Descubro que era da drogaria do bisavô do senhor, e onde ele punha remédio de ratos. Extraordinário. Encantei-me pela peça e hoje é onde ponho os meus temperos todos, tudo o que eu uso como condimento. Alcobertas também me trouxe a rotina de ir às feiras, aos mercados, buscar a fruta e o peixe – e eu sou boa negociadora. Essas coisas todas deram-me vida, começaram-me a dar vida, muita vida, por gostar, por ter prazer, comecei a redescobrir um prazer que eu tinha, mas que ficou ainda mais apurado. É como uma boa cozinha: a cozinha fica mais apurada quando tu começas a cozinhar à séria. Quando estou muito mal disposta posso garantir que não faço aquele arroz que faço se estiver irritada ou chateada com alguma coisa ou preocupada.

O livro.
O livro. Foto: DR

Há pouco usou essa expressão muito franca da "notificação", e no momento do diagnóstico, no livro, deparamo-nos com uma Bárbara muito pragmática, que pensa mais em toda a gente, dos amigos aos filhos, do que si sim. Como se recebe esta notícia?

Eu só posso falar disto depois de ter passado por isto. Portanto, com este livro o que eu quero verdadeiramente dizer é: olhem para mim, eu estou aqui, tu também podes vir a estar. Não vais fazer um testemunho ou um relato de quando estás a viver uma situação. Eu sei que fui bruta, tenho noção disso, quando disse às pessoas que tinha um cancro. Ficou toda a gente congelada, nem houve hipótese de alguma revista dizer que supostamente havia uma doença. Nada foi criado. Eu já vinha com um passado que me dizia que antes de dizer alguma coisa já estava com a sentença em cima. Nem te dão a oportunidade de dizer ‘calma, mas isto é por causa daquilo’. O livro acaba por ser também uma oportunidade. Foi uma maneira falar com as pessoas que acham que me conhecem. Eu estou ali, eu estou nestas páginas, em cada uma delas.

Mas o livro tem uma série de escolhas, histórias, que mostram essa Bárbara.

Há diagnósticos, há prognósticos, mas há uma sentença, a sentença é do leitor. Ao escrever o livro eu cultivei o desapego porque se não ia ficar aqui embrulhada nisto. A pensar ‘ai, agora vou mudar, ai, falta-me agora falar daquele nome, ai, não falei do outro’. Quando entreguei o livro ao meu editor Francisco Camacho, disse-lhe: ‘pronto, está aqui’. E eu achei que ia ter um mês e tal de revisões e ele disse-me: ‘não, acabou, o livro já está deste lado, vais cultivar o desapego porque quanto mais fizeres mais vais destruir a matéria-prima, isto é matéria-prima e é bruto’. Ficou como estava.

É um livro de momentos, de histórias, de fragilidades e aprendizagens. Algum que destaca em particular?

Os nomes ficaram os originais: "Caíste, levanta-te." De repente, lembro-me daquele episódio com o meu pai em que estamos os dois a olhar para o mar bravo, bandeira encarnada intransponível, e eu sou levada para o mar, e regresso em roda de areia deitadinha ao lado dele. Ele continua a observar o mar e diz ‘afinal hoje não estava um dia para fazermos praia’. É uma forma de encarar a vida, é uma lição. E eu agora já percebi o que é isto do ‘levanta-te’ (risos). Continuo mergulhada, mas já estou a surfar noutras praias. As pessoas, quando têm problemas muito graves na vida, entram num balão, por isso é que se fala do see the big picture - vês o mundo todo, tudo é relativizado. Um cancro também te mostra isso, também te ensina o resto. O Rodrigo Guedes Carvalhos deu-me sempre uma boa perspetiva num momento muito complicado daqueles primeiros 5 anos dos 40 aos 45, que foi: "mergulha". E a vida é isso.

Esta alma de escritora, de jornalista, fez-me pensar que deve sentir por um lado uma amargura quanto a tudo o que se escreveu durante esse período. Deve ter sido duro.

Ao mesmo tempo, eu comecei a trabalhar em televisão aos 17 anos, e sempre sofri um escrutínio. É como lidar com a imagem, fiz programas maravilhosos, entrevistas extraordinárias, em que a mim sempre me interessou ser só a mediadora para passar aquela pessoa para o espetador. Portanto, a minha formação base é esta: és tu que deves ser um transporte para um lugar, és um veículo para passar a mensagem, fazê-la chegar. E aquilo, naquela altura, chegou [refere-se ao momento difícil].

Na apresentação do livro.
Na apresentação do livro. Foto: DR

Exige-se às mulheres mães mais do que aos homens? Nesta década de batalhas duplas isso foi sentido?

Eu sou péssimo exemplo para isso porque me divorciei, porque sempre estive com os meus filhos de uma forma pouco convencional. As mães são este farol para os filhos, não há maneira de não estarmos em todo lado. A minha mãe continua a dizer-me que está frio e me vou constipar porque estou com o cabelo molhado, e eu tenho 50 anos. Quando me casei, quando constituímos uma família, nem equacionava alguma vez um divórcio, mas sim o que seria constituir família, tratar dos filhos, tratar da família, tratar de nós. Tenho uma família, mas não tenho um marido. Mas o que é isso do convencional? Eu ainda estou a absorver essas coisas todas porque o mundo está cada vez mais mudado, é a realidade a vir ao de cima. Há sempre referências na nossa estrutura, isso é que é importante. A ternura que recebemos, a parte do ser-se amado é muito importante. Sou filha de pais divorciados desde os 7 anos, de família convencional acabei por não ter muito. Houve sempre liberdade, isso era fundamental. Eu senti sempre que os meus pais me apoiavam de forma consistente e com o apoio certo.

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