Opinião

FeLiCidade, ataques racistas e “whataboutismo”

FeLiCidade, ataques racistas e “whataboutismo”

João Costa

Ex-ministro da Educação e militante do PS

Não tenho dúvidas em afirmar que sempre houve muito racismo em Portugal, que se evidencia não apenas nos comentários entredentes mas sobretudo nas marcas do que é estrutural, ou seja, na ligação entre pobreza e ascendência, entre etnia e acesso à universidade e ao emprego, entre tantos outros sintomas inequívocos. Também não hesito em afirmar que esse racismo tem hoje uma legitimação política, que o alimenta

No fim de semana de 4 e 5 de maio, Lisboa viveu, no Centro Cultural de Belém, um dos eventos mais bonitos e mais plenos de significado de que tenho memória nos últimos anos nesta cidade. Presto a minha homenagem à Aida Tavares e à equipa que com ela idealizou o festival FeLiCidade, Anabela Mota Ribeiro, André Teodósio, Gonçalo Riscado, Nádia Yracema, Sara Carinhas, Tiago Bartolomeu Costa e Madalena Wallenstein. Este evento não foi apenas um momento cultural da cidade de Lisboa. Foi uma celebração da diversidade linguística e cultural, do poder da arte e da literatura enquanto ferramentas cruciais para a criação e desenvolvimento das democracias, das artes performativas como instrumento para nos despertar, da capacidade da palavra para nos fazer parar e refletir. Foi um convite ao pensamento. Foi uma festa da igualdade pela diversidade. Foi mostrar que o Centro Cultural de Belém é um espaço público aberto a todos.

À Aida Tavares dissemos e dizemos que queremos mais no ano que vem. Que queremos celebrar a língua portuguesa, a liberdade e a arte todos os anos desta forma. Dizer-lhe “parabéns” não é suficiente. É preciso dizer obrigado muitas vezes.

A complexidade da arte é a melhor resposta à brutalidade do racismo e do crescimento da extrema-direita. Sábado à noite, enquanto festejávamos a liberdade no CCB, lá fora duas dezenas de nacionalistas, neonazis, manifestavam-se. No Porto, imigrantes foram violentamente atacados e agredidos apenas por serem imigrantes. Dentro do CCB éramos muitos mais do que os poucos que estavam lá fora, o que é um sinal inequívoco de que a liberdade é mais forte do que o ódio. Mas a violência indigna tem vindo a crescer em Portugal, como várias organizações antirracistas têm sinalizado repetidamente.

O racismo crescente tem múltiplos autores e responsáveis. Não tenho dúvidas em afirmar que sempre houve muito racismo em Portugal, que se evidencia não apenas nos comentários entredentes mas sobretudo nas marcas do que é estrutural, ou seja, na ligação entre pobreza e ascendência, entre etnia e acesso à universidade e ao emprego, entre tantos outros sintomas inequívocos. Também não hesito em afirmar que esse racismo tem hoje uma legitimação política, que o alimenta.

Partidos como o Chega e o Ergue-te também são autores dos ataques do Porto e das inúmeras violações da dignidade de pessoas racializadas, elencadas no comunicado recente da SOS Racismo. Ao fomentarem o discurso dos “portugueses de bem”, ao tentarem associar criminalidade a etnia, ao tentarem iludir com números falsos a balança entre o enorme contributo dos imigrantes para a Segurança Social e a despesa em apoios, ao desprezarem o multiculturalismo como ingrediente principal para a integração desejável, ao replicarem a absurda teoria da substituição, ao atacarem as comunidades ciganas, ao distinguirem os refugiados da Síria dos da Ucrânia, ao criticarem os subsídios a Organizações Não Governamentais que trabalham pelos direitos humanos, estão a dar a cobertura política aos ataques violentos contra imigrantes. Obviamente que não têm uma responsabilidade direta sobre os crimes, mas têm a consciência de que os relativizam na forma como são encarados por quem os observa e na crescente ausência de questionamento por quem os comete.

A evidência desta responsabilidade no relativismo está no whataboutismo a que assistimos na sequência dos crimes do Porto. Começou com a notícia falsa – e muito grave - de que os agressores eram eles próprios imigrantes, que apesar de desmentida foi amplamente replicada nas redes sociais. Continua na tentativa de transformar um crime num debate sobre as políticas de imigração. Este é talvez o mais grave enviesamento na condenação destes crimes. No fundo, está-se a culpabilizar a vítima, como se o facto de ainda não se garantir a sua mais plena integração justificasse que alguém entre pelas suas casas sobrelotadas, as vandalizasse e atacasse os seus habitantes. São cidadãos a quem não estamos a conseguir responder com dignidade. Eles estão vulneráveis e atribuímos à sua vulnerabilidade as razões para os ataques de quem os odeia? O whataboutismo ainda tem outras expressões. Houve quem, nas redes sociais, tentasse dizer que as vítimas já tinham cometido delitos. E se fosse verdade? Relativizam-se milícias populares racistas como forma de punição? É esse o estado democrático que defendem? Um deputado do Chega, Pedro Frazão, escreve, na rede social X, que alegados crimes de imigrantes argelinos são “as maravilhas do multiculturalismo”. Está a justificar os ataques, está a legitimar e está a sugerir que o multiculturalismo, que não é mais do que a sã convivência entre culturas e povos e a valorização da diferença e do respeito, está na base da violência. Na verdade, é a recusa do conhecimento do outro que gera dificuldades de integração e cria grupos e o sectarismo que geram ódio e comportamentos violentos.

Há autoridade moral nestes crimes e é preciso denunciar e combater esta legitimação que inunda a Europa pela mão dos partidos de extrema-direita populista.

No Centro Cultural de Belém, a Aida Tavares e a sua equipa inundaram-nos de esperança. Somos um país com a capacidade de rejeitar o racismo, que responde ao ódio com a complexidade da arte. Mas a esperança não basta. É preciso denunciar, agir e sobretudo combater a normalização do populismo que alimenta a violência racista.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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