Miúdos para sempre

Inês Meneses escreve-nos sobre envelhecer.

Quando, em manhãs muito claras, a luz incide no espelho e vejo de perto a minha pele, descubro aqui e ali marcas do tempo. Pergunto-me assustada: isto estava aqui antes? Não estava. A minha perplexidade dura pouco. Aceito o que ganha forma em proporção ao que vivi. Então volto vezes sem conta ao momento em que Nick Cave, num espelho que aceita esse confronto, se pergunta se ainda somos os mesmos. Se a vida e as circunstâncias não alteraram a nossa essência. Se aquelas pregas na testa nos lembram as perdas ou só o privilégio de ainda cá estarmos.

A minha mãe dizia muitas vezes que interiormente era uma menina e que o corpo não lhe correspondia: o corpo, as maleitas. Eu tirava-lhe uma fotografia e ela dizia: “Não me mostres.” E ela, mesmo a aproximar-se da morte, ficava sempre mais bonita. Hoje beijo as fotografias que lhe tirei da mesma forma que o meu pai é capaz de acariciar o retrato dela no cemitério. Cambaleamos depois sobre a nossa dor. O meu pai diz que já não é o mesmo. E mesmo vendo-o num manto de tristeza, consigo percebê-lo igual. Tal como a minha mãe foi sempre a mesma com as rasteiras todas que a vida lhe pregou.

O Nick Cave? É o mesmo, acredito. As pregas que traduzem a provável dor empurraram-no para a humanidade. É isso que a dor nos pode fazer quando não fica em nós só a revolta. Mas aí, não vamos confrontar-nos com o espelho – nem em manhãs claras nem em tardes sombrias cobertas de angústia.

Quem vamos sendo ao longo da vida? Mais tristes, mais pacificados, mais frustrados, mais felizes. Tudo isto e mais. O espelho destapa-nos as rugas e mais um cabelo branco que, do nada, acordou connosco. Quando os apanho, pergunto: foi uma lágrima que deu lugar a isto? Na minha teoria sem fundamento, são as lágrimas que fazem nascer os cabelos brancos.

Sim, mesmo ao espelho, contando esses cabelos, vou perguntando: sou a mesma? Em perda, no ganho dos quilos que não tinha, na aparência que não é elástica, ainda sou a mesma? Sou. Tenho a certeza de que sou. Posso ser um móvel que com o tempo ficou riscado, perdeu brilho ou foi lascado, mas, ainda assim, aquele móvel será sempre o mesmo. Sou eu com esses riscos todos. Vivi sobre todas as coisas e as coisas viveram em mim, mas ninguém adultera a minha essência.

Há em nós esse pensamento de sermos novos ainda, somos sempre miúdos num corpo que envelhece. Porque essa é que é a energia mais forte e a que nos transcende: não há um número que nos traduza. Há uma bengala em forma de algarismo que serve para nos empurrar para o lote dos menos válidos, mas teimemos em não deixar que nos descartem.

Vi, ao longo do último ano, velhos a serem tratados sem um pingo de compaixão. Gritavam-lhes como se os estivessem a ensinar a falar. Adiavam-lhes as idas à casa de banho. Regressavam horas depois com um tabuleiro cheio de nada. Vazio de dignidade. “É para comer tudo.” Eu vi os olhos dos velhos a perderem o brilho. Olhos cheios de abandono. Estes homens e mulheres já não se confrontavam com o espelho, não podiam chegar até lá, mas intimamente, mesmo no reino de todas as tristezas, eles sabiam que ainda eram os mesmos.

Sabiam de onde tinham vindo, a que cheirava a casa dos pais, a cor do pente da mãe.

Seremos sempre os mesmos, até quando nos retiram a possibilidade de nos encontrarmos com a nossa essência.

Um dos grandes equívocos desta sociedade é agir com os mais velhos como se já não tivessem identidade.

Somos os mesmos. Seremos sempre novos a habitar o nosso pensamento. O que ganhou forma a mais em mim é a soma de tudo o que já vivi.

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