O Coração Ainda Bate. Um amor benigno

Inês Meneses escreve sobre a vida de Tina Turner e a violência que se perpetua sobre as mulheres.

Vi na madrugada deste domingo um documentário* sobre Tina Turner. É impossível ter crescido sem a admirar, mesmo antes de adivinhar o que continuava a mantê-la de pé. Eu era adolescente – tinha 13 anos – quando Tina editou “Private Dancer”. Felizmente, para mim, quem me dera que tivesse sido assim para ela, só muito mais tarde a vim a associar a Ike Turner.

Tina, que gostava de ver a mãe à janela – “Uma mulher linda”, confessava ela –, assistiu durante muitos anos às tareias que a mãe levava do pai. Um dia, a mãe já não estava à janela e ela só a viu muitos anos mais tarde quando o sucesso já a tinha encontrado.

Durante décadas, todos os jornalistas caíram na tentação de perguntar a Tina Turner por Ike, o marido abusador que a violou vezes sem conta, que a humilhou, que a espancou mostrando o seu poder sobre ela (apesar de ela, como a vida viria a mostrar, ser uma força da natureza que nada nem ninguém derrubou). Os jornalistas perguntavam-lhe pelo ex-marido violento e ela repetia vezes sem conta que não queria voltar a esse lugar porque isso seria viver tudo de novo. E foram 16 anos de espancamentos diários, de uma violência sexual de que poucas vezes ouvimos falar. Era um monstro. E viver 16 anos com um monstro deixa marcas profundas.

Um dia, Tina, que tinha descoberto o budismo e aprendido a força dos seus mantras, perdeu o medo desse homem que era capaz de lhe atirar com café a ferver só porque podia, enquanto os filhos lhe batiam à porta e lhe perguntavam o que se passava e ela ainda conseguia dizer: “Está tudo bem.” Um dia, tudo isso acabou. Dias de revelação em que se percebe que o medo era uma venda nos olhos, uma mordaça na boca.

Tina Turner tem hoje 83 anos. Eu não sabia que ela tinha mais de 40 quando a comecei a seguir ou 50 quando já ninguém duvidava do seu talento. Era uma mulher sofrida que puxava a alma até à boca para poder cantar em palco tudo o que sofrera, mas ainda, e principalmente, tudo o que tinha para dar. Aos 50, encontrou o verdadeiro amor, aquele que continua a fazer um par com ela.

Os dois filhos biológicos de Tina já morreram. Ela, mesmo enfrentando vários problemas de saúde, resiste, como resistiu sempre. Que força é essa? Nem nós sabemos.

Hoje tinha de lhe dedicar esta crónica. Por todas as mulheres que continuam a ser vítimas dos seus companheiros, dos homens que as humilham diariamente, que as punem, que as espancam, que as violam quando ouvem um “não” e continuam. Tina Turner é uma num bilião, mas tem em si a força de todas as mulheres, mesmo das que ainda não descobriram que um dia poderão fugir, seguir em frente. Mulheres que vivem com homens inseguros que as espancam porque as temem.

Tina Turner esteve tão à frente do seu tempo, que se impôs numa altura em que já só se premiava caras novas e frescas e brancas e que encaixavam num formato certinho. Ela que queria ser do rock´n´roll e encher estádios e sobrelotou tantos. Ela que tinha um cabelo que gerava tantos comentários jocosos. Tantas coisas feias ouvi eu sobre ela, sem perceber ainda tudo aquilo que esses comentários arrastavam: a discriminação racial, de género, o medo enraizado contra uma mulher que já era empoderada antes de sabermos o que isso significava.

Escrevo esta crónica para todas as mulheres, para todas as mães que aguentaram anos de submissão, de insultos, de violência.

Escrevo esta crónica para quem nunca desiste de acreditar que um dia também o seu momento chegará: o da liberdade e do amor que não conhece agressões nem inseguranças e que se baseia numa ideia de sermos a cada dia melhores, também pela pessoa que temos connosco.

O amor é benigno quando é mesmo amor.

*“Tina”, documentário disponível na plataforma HBO.


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